Na sequência da pandemia decorrente do novo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19 e das medidas de confinamento e isolamento social, o recurso ao teletrabalho[1]Considera-se teletrabalho a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação (cf. … Continue reading generalizou-se. É neste âmbito que têm chegado à Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) várias questões relacionadas com o controlo, quer dos tempos de trabalho, quer da atividade laboral prestada em regime de teletrabalho a partir do domicílio do trabalhador.
De entre as medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica, o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, veio alargar, durante a sua vigência, o regime de prestação subordinada de teletrabalho. Neste contexto, e no exercício das suas atribuições e competências[2]Cf. alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 57.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Regulamento (UE) 2016/679, de 27 de abril de 2016 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – RGPD) e … Continue reading , a CNPD define, de forma sucinta, orientações de modo a garantir a conformidade dos tratamentos de dados pessoais dos trabalhadores com o regime jurídico de proteção de dados e minimizar o impacto sobre a privacidade em regime de teletrabalho.
1. Em circunstâncias normais, os instrumentos de trabalho respeitantes a tecnologias de informação e de comunicação utilizados pelo trabalhador em teletrabalho pertencem ao empregador[3]Cf. alínea e) do n.º 5 do artigo 166.º e artigo 168.º do Código de Trabalho. . Quando seja este o caso, os trabalhadores devem observar as regras de utilização e funcionamento dos instrumentos de trabalho que lhe forem disponibilizados, só podendo, salvo acordo em contrário, utilizá-los para a prestação de trabalho. Contudo, dada a excecionalidade da atual situação e a impossibilidade de as entidades empregadoras se terem dotado em tempo de recursos tecnológicos para disponibilizar à generalidade dos seus trabalhadores, frequentemente os meios utilizados são privados, o que impõe maior cautela na imposição de algumas medidas.
Naturalmente que, independentemente da propriedade dos instrumentos de trabalho, no regime de teletrabalho o empregador mantém os poderes de direção e de controlo da execução da prestação laboral. No entanto, neste regime não existe qualquer disposição legal que regule o controlo à distância[4]Na verdade, em matéria de teletrabalho, está expressamente regulada a possibilidade de o empregador
efetuar esse controlo através do acesso à residência do trabalhador, entre as 9h00 e as 19h00.
, pelo que a regra geral de proibição de utilização de meios de vigilância à distância, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador[5]Cf. n.º 1 do artigo 20.º do Código de Trabalho
, é plenamente aplicável à realidade de teletrabalho. Aliás, à mesma conclusão sempre se chegaria pela aplicação dos princípios da proporcionalidade e da minimização dos dados pessoais[6]Cf. alínea c) do n.º 1 do artigo 5.º do RGPD.
, uma vez que a utilização de tais meios implica uma restrição desnecessária e seguramente excessiva da vida privada do trabalhador.
Por esta razão, soluções tecnológicas para controlo à distância do desempenho do trabalhador não são admitidas. São disso exemplo os softwares que, para além do rastreamento do tempo de trabalho e de inatividade, registam as páginas de Internet visitadas, a localização do terminal em tempo real, as utilizações dos dispositivos periféricos (ratos e teclados), fazem captura de imagem do ambiente de trabalho, observam e registam quando se inicia o acesso a uma aplicação, controlam o documento em que se está a trabalhar e registam o respetivo tempo gasto em cada tarefa (v.g., TimeDoctor, Hubstaff, Timing, ManicTime, TimeCamp, Toggl, Harvest). Ferramentas deste tipo recolhem manifestamente em excesso dados pessoais dos trabalhadores, promovendo o controlo do trabalho num grau muito mais detalhado do que aquele que pode ser legitimamente realizado no contexto da sua prestação nas instalações da entidade empregadora. E a circunstância de o trabalho estar a ser prestado a partir do domicílio não justifica uma maior restrição da esfera jurídica dos trabalhadores. Nessa medida, a recolha e o subsequente tratamento daqueles dados violam o princípio da minimização dos dados pessoais Do mesmo modo, não é admissível impor ao trabalhador que mantenha a câmara de vídeo permanentemente ligada, nem, em princípio, será de admitir a possibilidade de gravação de teleconferências entre o empregador (ou dirigentes) e os trabalhadores.
Apesar da inadmissibilidade da utilização de tais ferramentas, reafirma-se que o empregador mantém o poder de controlar a atividade do trabalhador, o que poderá fazer, designadamente, fixando objetivos, criando obrigações de reporte com a periodicidade que entenda, marcando reuniões em teleconferência.
2. Situação diversa é a necessidade de registo de tempos de trabalho, que pode ser efetuado por recurso a soluções tecnológicas específicas neste regime de teletrabalho.
Tais soluções devem limitar-se a reproduzir o registo efetuado quando o trabalho é prestado nas instalações da entidade empregadora (i.e., registar o início e fim da atividade laboral e pausa para almoço). Portanto, estas ferramentas devem estar desenhadas de acordo com os princípios da privacidade desde a conceção e por defeito, não recolhendo mais informação do que a necessária para a prossecução daquela finalidade[7] Cf. artigo 25.º do RGPD. .
Não dispondo de tais ferramentas, excecionalmente é legitimo ao empregador fixar a obrigação de envio de email, SMS ou qualquer outro modo similar que lhe permita, para além de controlar a disponibilidade do trabalhador e os tempos de trabalho, demonstrar que não foram ultrapassados os tempos máximos de trabalho permitidos por lei. Do mesmo modo, nada impede que este controlo da disponibilidade do trabalhador e do cumprimento dos tempos de trabalho se faça por via de contacto telefónico ou eletrónico por parte do empregador.
Lisboa, 17 de abril de 2020
References
↑1 | Considera-se teletrabalho a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação (cf. artigo 165.º do Código do Trabalho) |
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↑2 | Cf. alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 57.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Regulamento (UE) 2016/679, de 27 de abril de 2016 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – RGPD) e artigos 3.º e 6.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto. |
↑3 | Cf. alínea e) do n.º 5 do artigo 166.º e artigo 168.º do Código de Trabalho. |
↑4 | Na verdade, em matéria de teletrabalho, está expressamente regulada a possibilidade de o empregador efetuar esse controlo através do acesso à residência do trabalhador, entre as 9h00 e as 19h00. |
↑5 | Cf. n.º 1 do artigo 20.º do Código de Trabalho |
↑6 | Cf. alínea c) do n.º 1 do artigo 5.º do RGPD. |
↑7 | Cf. artigo 25.º do RGPD. |